Há quem não leve as crianças a sério argumentando que tudo o que dizem é pura fantasia e imaginação, como se isso fosse nada, desconsiderando algo fundamental, uma vez que tratam-se de duas dimensões dentre as principais da nossa autoconstituição como humanos. Há os que se encantam com as crianças pela originalidade e criatividade com que (res)significam as coisas do mundo – o próximo, o cotidiano e até os de outros planetas. Mas há também quem entenda que o encontro das crianças com o conhecimento, com o outro, com o mundo só vale mesmo a partir da entrada delas nas convenções, nas formalizações, como aprender a ler e escrever, por exemplo. Considera-se tudo o que veio antes coisa do canto da Iara, não por acaso, jogada à morte no encontro das águas entre os Rios Negro e Solimões. Mas ela não morreu, como bem diz a lenda, e continua (en)cantando, desafiando a austeridade, a monocromia, a racionalidade de quem insiste nessa triste e monótona dicotomia.
Ouvir, aliás, é uma das portas de entrada para a imaginação, a fantasia e a criatividade. Olhar, contemplar, observar é outra porta que também leva até elas. E tem até uma ponte que é conversar – consigo mesmo e com os outros; quem não cruzá-la pode ter andado bastante, mas não chega lá. Seja pai, mãe, professora, professor, outras crianças da mesma idade ou quem quer que seja e de qualquer idade, é preciso estar consigo na companhia de alguém e conversar sobre o que se vê, ouve, observa, hipotetiza, imagina, realiza, produz – em diferentes linguagens.
Conversar é uma ponte que não existe pronta, se faz pelas trocas, pelas realizações, pela cooperação, pela gentileza, empatia, humildade, bom-humor, generosidade, disponibilidade, atenção… Enquanto a ponte não se faz, o que se tem é margem, limite, insegurança, vão. O encontro com a alteridade possibilita a confiança para a travessia que leva à fantasia, à criatividade, à imaginação. E revela as potências dos sujeitos que se encontram e a potência do encontro desses sujeitos com a fantasia, a criatividade e a imaginação.
No currículo da Educação Infantil, fantasia, criatividade e imaginação são conteúdos fundamentais, expressos, representados, demarcados, veiculados, armazenados em toda e qualquer linguagem, nos diferentes momentos e situações da rotina – acolhida/despedida, roda de conversa, de histórias, brincadeiras, higiene, lanche, pátio, desenho, pintura, recorte e colagem, modelagem, construções tridimensionais com diferentes elementos, música, dança, cinema, culinária, combinados, conflitos, investigações de natureza diversas.
Assim, damos visibilidade à potência e às aprendizagens realizadas no exercício do protagonismo compartilhado entre as crianças, entre elas e suas professoras e professores e entre todos e o conhecimento do mundo. Fantasia, criatividade e imaginação são ao mesmo tempo portais que expandem fronteiras e criam horizontes e filtro, peneira, recortes de singularidades e assinaturas de leituras, recriações e atualizações do mundo. Funcionam como a preservação da floresta amazônica para a sobrevivência da espécie humana e do planeta Terra. Fantasia, criatividade e imaginação precisam ser conhecidas, estudadas, compreendidas, respeitadas, veneradas, recomendadas, cultivadas, preservadas já desde a infância, pelas crianças e seus responsáveis – como legado, autoconstituição e preservação da própria humanidade.
Quer conhecer uma criança? Garanta que ela se apresente expressando-se pela fantasia, pela criatividade, pela imaginação.
Quer a companhia das crianças, ser uma boa companhia para elas, conversar na língua delas para olharem e lerem juntos o mundo? Restaure na sua figura de adulto o fluxo da fantasia, da criatividade e da imaginação. Ele é ponto de encontro, via de mão dupla, passaporte com visto, meio de transporte, de fruição, de interlocução.
Como é que se faz para restaurar esse fluxo? Acompanhe as crianças, observe-as, brinque, converse, faça coisas com elas, pergunte, conte histórias, acolha as perguntas delas, valorize suas produções e iniciativas, estimule sua autonomia, convide-as a participarem da vida da casa e da escola como protagonistas, como alguém que tem contribuições valiosas a fazer à vida comunitária… Consegue imaginar?
GABRIEL DE ANDRADE JUNQUEIRA FILHO
Pedagogo, professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Área de Educação Infantil. Autor de Linguagens geradoras: seleção e articulação de conteúdos em Educação Infantil (Editora mediação).