Os primeiros registros das histórias dos ancestrais do povo Makuxi foram feitos por eles em pedra, em narrativas que, a escritora e pesquisadora de literatura indígena, Trudruá Dorrico, explica: só podem ser traduzidas com os olhos voltados para a superfície.
“Só é possível ler e decodificar essas letras se olharmos para a terra. Pensarmos a terra e nossa relação com ela. Eu não sou melhor que uma formiga, uma abelha. Posso ser humana e ter uma forma que aparentemente é maior, mas se elas desaparecem, toda a cadeia natural é desequilibrada pondo em xeque a existência humana. Todos nós temos nossa função nesse ciclo da vida. Culturalmente nossos povos originários celebram essa consciência”, conta Trudruá, que também faz parte do povo Makuxi.
Nos últimos anos, o mercado editorial tem voltado sua atenção para autores indígenas, que trazem em seus escritos uma literatura com nuances políticas e que resgatam histórias ancestrais e outras formas de narrar. Trudruá destaca que a literatura produzida por esses autores valoriza a força da oralidade e da contação de histórias transmitidas por gerações.
“A literatura indígena tem sido esse território de convergência para reunir o que nossos pais, avós sabem ao mesmo tempo que podemos informar ao público não indígena pelo livro essas nossas vivências. Tudo para nós é artístico: narrar, cantar, dançar, escrever, desenhar, esculpir. Tudo isso sempre fizemos, mas agora estamos fazendo no livro editorial, com autoria e ilustração, no processo que permite chegar a todas as pessoas, nossas atuações literárias”, comemora.
A Lei nº 11.645, de 10 março de 2008, torna obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. No entanto, é difícil monitorar se ela está sendo realmente cumprida pelas escolas. Por outro lado, professores ainda encontram dificuldades em como tornar as aulas de literatura mais diversificadas com autores indígenas, mas alguns exemplos indicam que histórias que fogem ao cânone literário podem contribuir para um debate que vai muito além da disciplina.
Benefícios multidisciplinares
Professora e pesquisadora de literatura indígena, Rosivânia dos Santos levou seus estudos acadêmicos para a sala de aula durante as aulas remotas na pandemia, quando estava em busca de um texto que pudesse despertar uma reflexão mais profunda entre os alunos. Foi quando selecionou o trabalho do escritor Ailton Krenak, “Caminhos para o bem viver”, que despertou na turma um debate crítico não só sobre o momento, mas sobre a importância das cosmogonias, ou princípios indígenas, para encontrar outras perspectivas sobre o mundo.
Em outra experiência, ela trabalhou com autoras indígenas com uma turma do oitavo ano do ensino fundamental, escolhendo textos que traziam vivências distintas sobre como é ser mulher indígena.
Para a professora, reconhecer as temáticas que os autores trabalham, identificando aquelas que podem contribuir para as aulas, é um passo importante para trabalhar com textos indígenas para além da exploração de sua estética literária. Além disso, Rosivânia também destaca a importância de apresentar aos alunos um olhar sobre a cultura que parte de quem realmente a vive.
“Acredito que levar as produções indígenas para a sala de aula permite aos jovens ampliarem as suas concepções em relação ao fazer poético, demonstrando de uma forma bem prática que existem outros modos de criar e produzir arte que ultrapassam os limites do que é imposto pelo modelo canônico. Para além disso, é uma das estratégias de possibilitar o contato com a cultura indígena sem a agenciação de mediadores.”, reflete.
A escritora e pesquisadora Trudruá também define a criação de autores indígenas como uma revolução estética, que traz para a literatura mundos diversos que foram ignorados por séculos – e que contribuem para enriquecer a formação dos estudantes de forma multidisciplinar.
“A estética é da terra, é coletiva, e é individual, pois possibilita a criação a partir desse cânone indígena. Nesse sentido, quando uma estudante lê literatura indígena, seu mundo amplia em todos os sentidos, pois estará diante de metáforas, personagens, política, isto é, diante da vida e da arte dos povos indígenas.”, enfatiza.
Educação antirracista
Trabalhar a literatura indígena em sala de aula também ajuda a fortalecer o combate ao racismo contra povos originários – que em muitos momentos da literatura, foram representados de forma estereotipada por autores brancos. Com a escrita produzida por pessoas indígenas, Trudruá reforça que há uma quebra de estereótipos que amplia a formação dos alunos, que são convidados a ter um olhar mais sensível e empático a outras etnias.
“Natalie Diaz, poeta Mojave dos EUA, tem um verso em que se pergunta “onde estão os indígenas?”. Sua resposta é “não estão aqui”. A literatura de autoria indígena é um passo significativo na luta antirracista que incide sobre povos indígenas porque para além do tema social e cultural que diz respeito à nossa vida, um corpo indígena de forma simbólica passa a habitar na imaginação de estudantes e professores.”, destaca.
Mas como trabalhar a literatura indígena em sala de aula? Para o pesquisador em literatura indígena, Francisco Bezerra, é importante pensar no que pode funcionar para o público-alvo de acordo com seu momento escolar.
“Existe uma diversidade de obras indígenas que vão desde contos até romances. Nesse caso, é importante selecionar os textos de acordo com a faixa etária dos alunos. No campo da literatura infantojuvenil, por exemplo, os textos indígenas têm linguagem simples e as ilustrações ajudam no entendimento, o que pode vir a ser uma opção para trabalhar com leitores em formação”, recomenda. O professor também indica um olhar mais atento à Lei 11.645, e que seja cumprida para além de efemérides:
“O trabalho em conjunto como a própria Lei seria o mais ideal, entretanto, cada professor pode desenvolver ações dentro de cada disciplina para promover o debate sobre a formação cultural brasileira. A dica que eu recomendo sempre é fugir daquela velha ideia de promover esses debates apenas em datas comemorativas. O trabalho sobre os temas étnicos culturais deve ser constante para a formação de cidadãos conscientes”, indica.
Trudruá também recomenda que os professores busquem conhecer os autores.
“Quando os professores selecionarem textos, é importante se atentar para a autoria em primeiro lugar. Quando o autor é indígena vem o combo, a partir dele, se conhece o povo ao qual pertence, onde o povo radica seu território, qual língua fala [ou se não fala mais uma língua materna], como é a sua forma de expressão, entre outras informações que pode obter a partir dessa imersão no mundo do autor. Depois, conhecer a obra, o estilo, o gênero, a mensagem.”, sugere.
Leituras para trabalhar em sala de aula
- “Eu sou macuxi e outras histórias” , de Julie Dorrico (Caos e Letras, 2019)
- O Pássaro Encantado, de Eliane Potiguara (Jujuba Editora, 2014)
- “O Coco que Guardava a Noite”, de Eliane Potiguara (Mundo Mirim, 2012)
- “Caminhos para a Cultura do Bem-Viver”, de Ailton Krenak, disponível aqui
- “Histórias de Índio”, de Daniel Munduruku(Companhia das Letrinhas)
Projetos para acompanhar
@LeiaMulheres indígenas – Projeto mantido por Trudruá Dorrico e Jamille Anahata, que divulga autoras mulheres e indígenas.
Leia Autoras Indígenas – Websérie, do coletivo Leia Mulheres Indígenas, em parceria com o Sesc, com entrevistas com autoras indígenas.
Canal Rosivânia dos Santos – Playlist Literatura Indígena – Em seu canal, a professora Rosivânia dos Santos compartilha entrevistas com autores da literatura indígena e sugere atividades.
Autora: Agnes Sofia Guimarães
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.