Um jogo de futebol – seja profissional, disputando troféus nos gramados mais cobiçados do mundo, ou seja amador, brincando de bola com dois chinelos fincados na areia – pode ser considerado uma arena onde é exibido o ápice da criatividade humana. Isso porque, para muito além da beleza estética do jogo, da plasticidade das jogadas de efeito, das estratégias de cada time e da competitividade envolvida, um jogo de futebol pode ser reduzido a uma sequência de decisões de cada jogador, que são realizadas durante o tempo da partida.
Em um jogo do mais alto nível do esporte, cada atleta toma cerca de 2.500 decisões. Se levarmos em conta que são 22 jogadores em campo, isso significa que mais de 50 mil possibilidades de jogadas podem ser executadas em um espaço de 90 minutos. “Cada uma dessas decisões é contextual, única e irrepetível – logo criativa”, aponta Cristiano Hoppe Navarro, educador físico e doutorando em neurociências pela Universidade de Brasília (UnB).
Ele define o futebol como um dos esportes mais criativos que existem, por conta de sua rápida imprevisibilidade, sua característica coletiva e a amplitude de recursos possíveis dentro das regras. “A criatividade pode ser vista em todas as etapas do jogo – as fases de transição, organização e bola parada, defensivas e ofensivas”, aponta Cristiano. “Pode surgir do improviso envolvendo muitas vezes uma capacidade de antevisão, ou das pranchetas de treinadores em situações mais ou menos ensaiadas.”
Um dos maiores futebolistas da história, Johann Cruyff, maestro do esquadrão conhecido como “carrossel holandês”, inovou ao liderar, em plena Copa do Mundo de 1974, uma seleção que jogava sem posições fixas. Uma famosa frase atribuída à Cruyff diz que “você joga futebol com a sua cabeça, as pernas não passam de instrumentos auxiliares”.
“Sendo o futebol um esporte altamente cognitivo, e dada a tendência de equivalência física, o sucesso futuro pertencerá àqueles que mais souberem aplicar sua criatividade”, decreta Cristiano.
Criatividade em alta
Não é somente no futebol que a criatividade ganha valor. Em um futuro no qual uma fatia relevante do mercado de trabalho será cada vez mais automatizada, com o uso crescente de inteligência artificial, a criatividade vem se tornando um dos ativos mais importantes do mundo atual. Segundo um levantamento da consultoria McKinsey, até 2030 a demanda por profissionais criativos aumentará em até 40%.
“A mutação da sociedade é cada vez mais acelerada, e a mudança está diretamente ligada ao ato de criar, que traz o novo, diferente e transformador. A criatividade, portanto, será decisiva no mercado de trabalho, além de ser crucial para a realização de nossa humanidade”, defende o educador físico.
Nesse cenário, é fundamental que a criação, inovação e inventividade sejam habilidades trabalhadas e estimuladas nas escolas brasileiras. Metodologias ativas como a educação mão na massa e a gamificação, por exemplo, permitem que “sejam cultivados traços de personalidade pró-criatividade para a vida – como abertura à experiência e ao risco. É fundamental que esse processo aconteça desde a infância e a adolescência”, observa Cristiano, que também é técnico desportivo na UnB e criador do futmanobol, modalidade que mistura fundamentos do futebol, vôlei, basquete e handebol.
Futebol: próspero em competências socioemocionais
Mas como fazer com que a criatividade exercida no futebol extrapole as quatro linhas da quadra poliesportiva da escola, indo além das aulas de Educação Física e dos intervalos de aula? Pesquisador de neurociência, Cristiano detalha a explicação para mostrar como essa costura pode acontecer. “Atualmente, a neurociência está se aprofundando no cérebro criativo. Considera-se que o hemisfério cerebral direito lida com o novo, enquanto o esquerdo com o conhecido. Porém, por a criatividade englobar uma série de fenômenos, e pelos momentos criativos surgirem muitas vezes de uma associação transdisciplinar de ideias, podemos dizer que a criatividade em uma área (corporal, por exemplo) pode beneficiar a criatividade em outra (linguística, lógica, visual etc.).”
Para além de exercer a criatividade e, claro, incrementar o condicionamento físico – favorecendo até mesmo a saúde mental dos jovens -, o esporte é próspero em fortalecer valores e competências socioemocionais como respeito, empatia, tolerância ao estresse e à frustração e persistência, entre outros. “No ambiente da escola pública, ele também se presta como um fiador do diálogo e elemento de coesão da comunidade”, afirma o pesquisador. “Já durante as aulas, o futebol pode ser abordado de maneira transdisciplinar, ao sabor dos tempos atuais de transgressão das barreiras disciplinares.”
Por fim, Cristiano enfatiza especialmente dois aspectos desenvolvidos em crianças e adolescentes que experimentam o futebol na escola: colaboração e criatividade. “Ambas as competências são cada vez mais essenciais, e surgem espontaneamente na prática do esporte, pela necessidade de encontrar soluções que vão depender do coletivo e da inovação”, conclui.
Autor: Danilo Mekari
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.