A partir de 2022, escolas públicas e privadas de todo país devem implementar o Novo Ensino Médio, modelo que organiza 60% da grade curricular em torno de disciplinas comuns e 40% em itinerários formativos de aprofundamento, que são escolhidos pelos estudantes. Além das mudanças estruturais e da ampliação de carga horária, essa proposta, aliada à BNCC (Base Nacional Comum Curricular), pode trazer novas possibilidades para que gestores e professores levem mais criatividade para a sala de aula.
Para falar sobre o tema, conversamos com Anna Penido, diretora do Centro Lemann de Liderança para Equidade na Educação. Ela também possui especialização em Direitos Humanos pela Universidade de Columbia e em Gestão Social para o Desenvolvimento pela UFBA.
O que a BNCC traz em termos de criatividade e inovação?
Anna Penido: Quando começamos a analisar o que a BNCC traz, vemos algumas possibilidades muito interessantes de tornar esse estudante um construtor, um agente ativo, um protagonista no seu processo de aprendizagem, e também de se formar para ser um agente de transformação do mundo à sua volta.
Isso acontece, por exemplo, em relação à concepção do desenvolvimento integral, entendida como todas as dimensões do ser humano, saindo da questão acadêmica strictu sensu e pensando na formação mais ampla desses indivíduos para lidar, inclusive, com os desafios, as demandas e a realidade do século 21.
Algumas das Competências Gerais da BNCC dialogam muito com a criatividade e a inovação. Tem toda a preocupação de um pensamento crítico que leve à criatividade, ou seja, que as pessoas não só fiquem presas no problema que elas investigam, mas que sejam capazes de gerar e implementar soluções. Tem um fator ali de criatividade, não só da fruição artística (que também é muito importante), mas dessa criatividade pragmática para resolver os desafios da contemporaneidade.
Uma outra coisa é o repertório cultural. Fica claro que, hoje, para você ser uma pessoa propositiva e criativa no mundo, você precisa de repertório. Quanto mais amplo for o seu espectro de experiências, de vivências, de conhecimentos — com diversidade, não só quantidade —, mais repertório você vai ter para criar o novo e propor coisas inusitadas.
A Competência Cultura Digital também traz uma ferramenta muito importante para essa criatividade hoje em dia. Tanto para a expansão do repertório, para além do que você consegue acessar no seu território, quanto para a criação de soluções e inovações.
“Algumas das Competências Gerais da BNCC dialogam muito com a criatividade e a inovação. Tem toda a preocupação de um pensamento crítico que leve à criatividade”
Um outro aspecto, menos óbvio, é a questão do autoconhecimento e autocuidado. Essa competência fala de conhecer e reconhecer suas potências e também suas dificuldades. E também ser criativo nas soluções de suas dificuldades.
Geralmente, estudantes que acabam entrando em uma escola mais amorfa, mais embotada, vão se desconectando da própria força criativa que eles têm dentro de si. Todo mundo tem força criativa, mesmo os que parecem tímidos, ou menos expansivos, ou mais conservadores. Todo mundo tem força criativa.
E pensando no Novo Ensino Médio?
Anna Penido: Outro aspecto da Base, que dialoga mais com as diretrizes curriculares do Novo Ensino Médio, fala de abordagens pedagógicas, de metodologias, de vivências no ambiente escolar, que também são muito mais estimulantes para a criatividade. Mais interação, mais projeto, mais mão na massa, mais troca, mais protagonismo do aluno.
Também podemos citar os itinerários formativos, que são a parte flexível do currículo. Eles vão dialogar diretamente com a criatividade e o empreendedorismo. Tanto é que o itinerário formativo tem que se guiar por quatro eixos estruturantes.
O primeiro é o pensamento científico, para que ele [o estudante] tenha o rigor acadêmico e a capacidade de investigar o mundo. O segundo já são os processos criativos, que é todo focado em desenvolver a capacidade desse estudante de criar a partir do conhecido, das evidências e dos dados.
Tem um terceiro eixo, a intervenção, que é como levar essa solução criativa para gerar uma transformação no entorno do aluno. É como usar a criatividade como meio, não só para gerar um produto.
E o último eixo, o empreendedorismo, que é você realmente desenvolver essa capacidade de transformar ideias em ações concretas. O empreendedorismo é isso, não é necessariamente criar um negócio, com o objetivo de geração de renda, mas ser capaz de ter boas ideias e ser capaz de materializá-las.
Quais mudanças favorecem uma aprendizagem mais criativa e inovadora?
Anna Penido: Tem essas três coisas que mencionei que mexem no currículo, que são a BNCC, as diretrizes e os itinerários formativos. Agora, tem mais [mudanças] no Novo Ensino Médio que tem potência para favorecer [a criatividade], mas vai depender da implementação.
Temos a questão do foco no estudante, de partir daquilo que faz sentido para ele e que vai ter impacto na vida dele. Depois, tem o protagonismo, que é algo muito forte no Novo Ensino Médio. Compreendemos o protagonismo estudantil como a capacidade do aluno de fazer escolhas, de ser coautor.
Quando você vai para um processo de escuta, você tem que criar suas opiniões e suas ideias. Quando você vai para um processo de escolha, você tem que criar suas opções e seus caminhos. Quando você vai para um processo de coautoria, você tem que criar as atividades. E na corresponsabilização, você tem que criar soluções, a viabilidade.
Tudo isso estimula uma atitude criativa. E isso de ter uma parte flexível do currículo também faz com que os estudantes escolham temas em que eles vão poder se aprofundar e criar.
Diante desse contexto, qual é o papel do professor na hora de trazer todas essas possibilidades?
Anna Penido: Tem dois papéis importantes. Um é o de ser mediador, provocador, facilitador, curador (que vai trazer os estímulos e os conteúdos que vão expandir o repertório). O próprio professor também vai ser um criador.
A ideia é de ele atuar como um designer da aprendizagem, em que ele vai ter várias possibilidades metodológicas, várias ferramentas pedagógicas, e vai desenhar os caminhos que sejam mais adequados para cada turma e para cada realidade em que ele atua.
Esse professor também é convidado a ser criativo e, por isso mesmo, ser também espelho para esse estudante. Mais do que tudo, não ser um reprodutor, porque o que mata mesmo a criatividade é essa coisa de só reproduzir e não ter espaço para propor.
Além disso, é muito importante que a equipe gestora e as lideranças educacionais sejam igualmente criativas e criem uma ambiência na escola em que a criatividade possa acontecer. Todo o ambiente da escola tem que ser criativo, os espaços, as relações e as atividades (dentro e fora da sala de aula) têm que estimular essa criatividade.
“Todo o ambiente da escola tem que ser criativo, os espaços, as relações e as atividades (dentro e fora da sala de aula) têm que estimular essa criatividade”
Quais são as possibilidades de trabalhos e atividades que podem existir nesse novo contexto?
Anna Penido: São tantas, mas vou citar algumas. Por exemplo, dentro de sala de aula, o próprio professor pode definir algumas das estratégias metodológicas e alguns dos temas que vão, digamos assim, deflagrar o aprendizado de alguns componentes curriculares. Fazer isso com a participação dos estudantes já é super bacana.
Realmente dar espaço para que eles criem. Não só pedir cartazes em cartolina, aquela coisa mais manjada, mas que criem peças de teatro, músicas, produtos e protótipos, projetos, objetos de arte visual, traquitanas. Todas as atividades na escola podem estar conectadas para eles usarem o conhecimento adquirido e as competências para produzirem algo e materializarem o aprendizado.
Outra coisa que é muito interessante é os estudantes se envolverem na solução de problemas da própria escola. Se a escola está com um problema de muito gasto de energia, o que podemos fazer? E os próprios alunos serem propositores e construírem as soluções.
Deixar que os jovens tragam para o ambiente da escola aquilo que os estimula fora dela. Às vezes, parece que tem um portal e, quando vou entrar na escola, tenho que deixar tudo que eu gosto do lado de fora: a forma como eu me visto, as músicas que eu gosto, os meus ídolos.
Há uma ruptura, uma desconexão. Se trouxermos essas coisas para dentro da escola e soubermos trabalhar isso, não limitando os estudantes àquilo que eles já conhecem, mas usando isso como gancho para expandir o repertório, é muito interessante.
Tem outro ponto que gostaria de mencionar?
Anna Penido: Acho que falamos muito do ambiente e das práticas pedagógicas, mas uma coisa que é muito importante são as relações. A relação entre os adultos e os estudantes também pode ser inibidora ou estimuladora de criatividade.
Se são adultos que desprezam ou não valorizam a opinião e a contribuição que os estudantes têm a oferecer, geralmente isso retrai [os jovens]. Aqueles olhares de desagrado ou de baixa expectativa (“não vai vir nada de você mesmo”), a forma como as pessoas conversam. [A forma] de olhar no olho e perceber o outro, ver potência e luz dentro do outro e entender qual é o mecanismo para fazer essa potência se manifestar: isso tudo tem a ver com relação. Quando você não tem mais nada na escola de recursos, mas essa relação, isso pode fazer toda a diferença para estimular a criatividade e a inovação.
Autora: Aline Naomi
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.