Apesar do consenso sobre o papel e a relevância da criatividade para o futuro da educação, os fundamentos neurobiológicos da criatividade são ainda mal compreendidos. Se antigamente a criatividade era vista como uma habilidade destinada apenas a artistas e gênios, hoje sabemos que o ato de criar é um fenômeno resultante de um conjunto de funções e comandos do nosso cérebro, logo ela pode ser treinada e aperfeiçoada.
Embora seja complexa, a investigação neurocientífica da criatividade é acessível às ferramentas da neurociência, vinculando o comportamento à atividade registrada nas redes cerebrais. O principal desafio é não cair nas simplificações fáceis que invariavelmente surgem quando se discute a criatividade.
Por exemplo, é comum responsabilizar a escola pelo declínio da criatividade. De fato, essa afirmação é corroborada por estudos que apontam um decréscimo da criatividade nas crianças com os anos de permanência na escola. No entanto, não podemos desconsiderar as modificações cerebrais ontogenéticas e seus efeitos sobre as capacidades dos indivíduos, dentre elas a criativa.
“O principal desafio é não cair nas simplificações fáceis que invariavelmente surgem quando se discute a criatividade”
Como afirma Eugenio (2019), à luz das neurociências, podemos dizer que a escola tradicional não mata a criatividade, contudo não se importa tanto para salvá-la de seu declínio natural. No livro How Creativity Works, o americano Johah Leherer observou que 95% dos alunos no segundo ano (o que corresponde no Brasil aos alunos iniciais do ensino fundamental) são criativos – eles desenham, pintam e criam diversas histórias. No entanto, no quinto ano este percentual cai para 50%. No ensino médio, 10% apenas são considerados criativos. Então, seriam as escolas as responsáveis pelo declínio da criatividade desses alunos?
Não há dúvidas que existem diversas razões, e a escola está longe de ser a única vilã da história. Vejamos as razões neurobiológicas: é sabido, por exemplo, que o cérebro é um órgão plástico e se modifica ao longo do tempo de vida do indivíduo. Uma área cerebral importante que devemos nos atentar para entender o fenômeno observado por Leherer é o córtex pré-frontal, a área mais anterior do cérebro. Essa área é responsável pelas chamadas funções executivas e abriga circuitos neuronais responsáveis por habilidades de autocontrole do indivíduo. Acontece que essa área se desenvolve somente mais tarde no indivíduo, completando seu estágio de maturação apenas na segunda década da vida. Dessa forma, o córtex pré-frontal não exerce nenhuma ação de controle sobre os impulsos e ações da criança. Esses estudantes criam de forma tranquila e prazerosa, sem tantas preocupações com opiniões externas.
No entanto, com o passar dos anos, as áreas de autocontrole se desenvolvem e iniciam o processo de inibição sobre os impulsos do indivíduo. As crianças começam a prestar mais atenção nas expectativas e críticas de seus pares, à medida em que aprendem também a ler com mais assertividade as expressões emocionais manifestadas pelos colegas e pelo professor. O medo do erro, do exagero, da incoerência e do improviso suprime paulatinamente o potencial criativo da criança.
“O medo do erro, do exagero, da incoerência e do improviso suprime paulatinamente o potencial criativo da criança.”
Na adolescência, há outro fator agravante que ajuda a explicar porque os alunos do ensino médio são considerados pouco criativos. Diferente do primeiro, esse motivo está mais relacionado à natureza química dos nossos cérebros. Por exemplo, sabemos que por volta dos 8-12 anos existe uma perda de receptores de dopamina. Essa substância é um neurotransmissor responsável, entre outros efeitos, por passar a sensação de prazer e de motivação às pessoas. Uma das consequências da diminuição desse número de receptores é o fato de o jovem estudante se entediar com grande facilidade. Logo, o dado de Leherer sobre o baixo potencial criativo dos alunos do ensino médio pode ser explicado também pelos fatores motivacionais. Isso quer dizer que os jovens não se envolvem em atividades criativas simplesmente porque estão desmotivados.
Para chegar nos mesmos níveis de satisfação de antes, o adolescente busca atividades mais desafiadoras e que envolvem correr riscos. Pode parecer um problema para os dias atuais esses comportamentos, mas é importante considerar que nosso cérebro é um produto de milhões de anos. No passado, os sujeitos que não tinham coragem para sair debaixo da asa dos pais e se aventurar para caçar, buscar e conquistar recursos (caça, pesca, etc.), provavelmente foram extintos. E isso explica também porque o adolescente tolera menos uma aula monótona, focada na transmissão de informações, desconectada de seus interesses e de sua realidade.
Essa desmotivação é muitas vezes confundida com preguiça, falta de iniciativa própria ou então falta de inteligência – mal sabe o professor que o interesse do aluno é outro para além das classes gramaticais, dos polinômios e da história do Brasil. Nessa época, os alunos querem ser desafiados, colocar em prova suas habilidades e se relacionar, especialmente com os outros. É dessa maneira que, ao longo do desenvolvimento das duas primeiras décadas de vida dos indivíduos, a escola e seus atores atuam como cúmplices da derrocada da criatividade, diante das mudanças neuroquímicas e do desenvolvimento de áreas de autocontrole – que desempenham papéis fundamentais na vida social, afetiva e intelectual do indivíduo adulto.
O que a escola pode fazer?
O calcanhar de Aquiles está justamente nessa cumplicidade exagerada com as regras que regem o desenvolvimento humano. Em relação à criatividade, sem contar os mecanismos de autocontrole, a escola precisa nadar contra a maré, criando experiências de aprendizagem que visam o prolongamento das capacidades criativas em seus estudantes. Portanto, desafiar o cérebro, surpreendê-lo e subverter a lógica linear a partir de um olhar e pensamento divergente sobre os problemas é o caminho mais seguro para transformar uma escola em um espaço criativo, segundo os estudos recentes das neurociências.
Estudos com EEG (eletroencefalograma), por exemplo, mostraram maior atividade cerebral durante ações que exigem um pensamento mais divergente do que convergente (Jauk, Benedek, & Neubauer, 2012). O pensamento divergente valoriza a quantidade de ideias e as associações que elas podem ser feitas. Costuma-se trabalhar com atividades em que temos diferentes respostas para uma mesma pergunta. Por exemplo: O que podemos fazer para combater o desmatamento na Amazônia? Isso é bem diferente de perguntar ao aluno ‘qual é a capital da Argentina?’ ou, ainda, ‘qual é o nome do grupo de plantas mais primitivo?’.
“Em relação à criatividade, sem contar os mecanismos de autocontrole, a escola precisa nadar contra a maré, criando experiências de aprendizagem que visam o prolongamento das capacidades criativas em seus estudantes”
A maioria dos estudantes e professores têm vivenciado uma cultura escolar que prioriza esse modelo de atividades, que demanda uma resposta certa e imediata. Esse hábito é típico de um ensino convergente, que segue um modo de pensamento orientado para obter uma única resposta a uma situação – é um pensamento rigoroso e pouco criativo. O aluno adquire o hábito de ter ideias fixas, logo apresenta dificuldades para aceitar o que é dito de diferente, pois as ideias preconcebidas são consideradas as corretas.
Ao fazer essa consideração, isso não significa de forma nenhuma que o pensamento convergente deve ser banido da escola. O pensamento convergente é fundamental para criar o que chamamos de repertório no indivíduo, e é a partir desse repertório que o aluno poderá desenvolver, de fato, a sua criatividade. O que estamos sugerindo aqui é que é importante a escola abrigar os dois tipos de pensamento no seu currículo.
Abordagem convergente e divergente na prática
Lloyd Barrow comparou uma aula de ciências com uma abordagem convergente e outra, digamos, mais divergente e criativa. A aula de ciências iniciava a partir de uma pergunta: como o número de cubos de gelos afeta a temperatura da água? Em uma aula tradicional, uma determinada quantidade de água teria sua temperatura aferida inicialmente. E, conforme novos cubos de gelo fossem adicionados, novos registros da temperatura seriam obtidos. Os alunos já saberiam que a temperatura iria diminuir com o passar do tempo. Cada aluno poderia fazer o experimento sozinho ou em duplas, preencheria uma tabela e a entregaria ao professor, que eventualmente atribuiria uma nota para a tarefa realizada. Quando os estudantes trabalhavam dessa forma, especialmente sozinhos ou em duplas, Barrow identificou que a competição prevalecia.
O autor também notou que, na versão divergente, o professor trabalhou com grupos de três ou quatro estudantes e estimulou mais a colaboração entre eles. Nesse tipo de aula, o professor fez um planejamento com mais tempo para que os alunos perguntassem e refletissem sobre a questão proposta. Por exemplo, em uma sessão de brainstorming, ele provocava novas ideias e perguntas a partir da própria curiosidade dos estudantes. Em tempo, os alunos também sentiam cada vez mais necessidade de visualizar suas ideias, assim eles se organizavam para criar esquemas visuais. Os alunos desenhavam diferentes cubos de gelo (visualização) e levantavam questões para entender se a forma do cubo fazia diferença na mudança de temperatura da água. Dessa forma, outras variáveis que afetam a mudança da temperatura eram levadas em consideração: quantidade de água (50ml, 100ml, 150ml), temperatura inicial (10ºC, 15ºC, 20ºC), tempo de intervalo entre uma medida e outra (1, 2, 3 minutos), composição do vasilhame (plástico, vidro, metal), tipo de água (destilada, da torneira, gaseificada) e tamanho e forma do recipiente (cilindro, retangular, 150ml, 100ml, etc).
As questões levantadas pelos estudantes podem ser divididas pelo professor entre os estudantes. Cada grupo pesquisa sobre um tópico específico, analisa informações e realiza pequenos testes (protótipos) para validar suas ideias. Em seguida, organiza uma síntese que é compartilhada e discutida com os colegas. Dessa forma, o professor privilegia mais a participação ativa do aluno, mais envolvimento e uma postura mais investigativa, reflexiva e colaborativa.
Como já discutimos, a escola não é a única vilã responsável pela morte da criatividade, mas ele pode adotar práticas motivadoras que contribuem para o prolongamento das capacidades criativas em seus estudantes. Diante de tantas pesquisas e evidências, os educadores também precisam estar mais abertos a um planejamento de aula com momentos divergentes, e consequentemente mais criativos.
Saiba mais sobre as referências e pesquisas citadas pelo autor aqui.
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.
TIAGO EUGENIO
Cofundador e diretor executivo da Plataforma Educacional Neurons e da Escape Factory. Tem mestrado em Psicobiologia pela UFRN e formação em Game-Based Learning e gamification pela Quest To Learn, em Nova York, além de passagens pelo Colégio Bandeirantes, onde auxiliou a criar o primeiro currículo STEAM para o ensino médio. É autor do livro “Aula Em Jogo: descomplicando a gamificação para educadores” e do livro “Por dentro do jogo: como os games impactam o cérebro e as relações sociais” e diversos artigos, nos quais discute temas interdisciplinares como videogame, educação, criatividade, saúde e tecnologias digitais. É professor convidado de pós-graduações em diversas instituições, dentre elas USP, UNIFESP, IPOG, Santa Casa e Instituto Singularidades.