Por que há crianças que não podem brincar? Como podemos ajudá-las?
Estas foram algumas das questões que guiaram a investigação do projeto de classe “Escola de Brincadeiras”, realizado no 1º ano do Ensino Fundamental da Escola Comunitária de Campinas (SP). A professora da turma, Solange Corrêa, buscava apresentar aos alunos a Declaração dos Direitos da Criança. E, a partir desse exercício, dar início a um processo de aprendizado coletivo, criativo e horizontal, no qual as crianças pudessem entender histórias de vida umas das outras, observando semelhanças e diferenças em suas trajetórias.
Ao traduzir para seus alunos um documento de linguagem complexa, pertencente ao mundo dos adultos, e colocá-los no centro de seu processo de aprendizagem enquanto estavam começando a ler e escrever, é possível afirmar que Solange realizou um ato de insubordinação criativa. É o que defende um artigo das pesquisadoras Celi Lopes, doutora em Educação pela Unicamp, e Beatriz D’Ambrosio (in memorian), que foi professora e pesquisadora no Departamento de Matemática da Miami University (MU).
Mas, afinal, do que se trata a insubordinação criativa? De que forma esse conceito pode ser aplicado na educação? Como ele pode impactar no desenvolvimento da aprendizagem e no dia a dia escolar?
Reação responsável
O conceito de insubordinação criativa nasce através de uma pesquisa sobre estruturas burocráticas, realizada pelo sociólogo estadunidense Robert Merton na década de 1980. “O ensaio critica o tratamento padronizado, que não respeita a existência de problemas individuais”, aponta Celi, que atualmente é docente permanente do programa de pós-graduação em educação da PUC-Campinas.
A partir deste estudo, um grupo de pesquisadores de Chicago (EUA) define a insubordinação criativa como uma “prática de desobediência de regras pré-estabelecidas”, tendo a intenção de “diluir os seus efeitos desumanizantes”. Segundo Celi, a sistematização do conceito, publicada por este grupo nos anos 1990, se baseou em uma investigação sobre diretores de escolas públicas que agiam em contraposição às diretrizes que vinham de órgãos superiores de ensino. “Quando chegavam regras autoritárias e impessoais, que prejudicavam a escola, esses diretores se contrapunham sempre com uma nova ação que atendesse melhor suas comunidades.”
É essa tomada de decisão – reagindo com responsabilidade a uma ação imposta – que é denominada de insubordinação criativa.
Insubordinação criativa na educação brasileira
Na educação brasileira, este conceito é interpretado à luz da perspectiva freiriana. “É uma ideia que leva você a responder às necessidades com princípios de equidade, solidariedade e respeito à diversidade, fundamentais para projetos de sociedade humanistas”, observa Celi, que, ao lado de Beatriz D’Ambrosio, foi pioneira na pesquisa de como a insubordinação criativa é aplicada na educação brasileira.
É interessante notar que ambas as pesquisadoras fizeram suas carreiras na educação matemática. Elas partiram do pressuposto de que as aulas de Matemática deveriam ser espaços nos quais fosse possível atingir o objetivo do componente curricular: formar e desenvolver pessoas capazes de contribuir para a resolução de problemas que afligem o mundo atual.
Celi leciona Matemática há 39 anos. “Sempre foi uma luta para conquistar as crianças. Os professores tinham o desejo de envolver mais os alunos em suas aulas e evitar a ‘decoreba’, e para isso era necessário uma mudança significativa – tanto na formação inicial, trazendo perspectivas pautadas em trabalho reflexivo e colaborativo, como na formação continuada”, sugere Celi.
Um pouco mais sobre Celi
Celi também coordena o Grupo de Investigação e Formação em Educação Matemática (GIFEM), grupo de estudos autônomo sediado em Valinhos (SP) que há 10 anos reúne docentes de escolas públicas para refletir sobre a concepção do professor como produtor de conhecimento, entre outros temas. “Superamos a fase em que a universidade produzia pesquisa e dizia para o professor como ele deveria trabalhar. A maioria dos meus orientandos recentes são professores da rede pública que pesquisam em suas escolas e realidades e trazem resultados consistentes. Este movimento é muito particular do Brasil, não se vê muito em outros países”, conta Celi. Ela também foi vice-presidente da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, entidade que já organizou duas conferências sobre insubordinação criativa.
Atos de insubordinação na prática dos professores
No ensaio “A subversão responsável na constituição do educador matemático”, Beatriz D’Ambrosio lista alguns exemplos de insubordinação criativa na educação. São momentos em que o professor:
- Rompe com o currículo prescrito;
- Coloca o aluno no centro do processo educacional;
- Considera o desenvolvimento das crianças ao planejar suas ações;
- Desafia os alunos a identificar problemas e criar propostas para a solução;
- Transcende o ambiente escolar – extrapola o alcance da sala de aula;
- Cria oportunidade para as crianças vivenciarem o problema para melhor fazer uma leitura de mundo;
- Cria oportunidade para as crianças viverem a sua proposta de solução e experimentarem suas ações;
- Apoia as crianças ao atribuir significado e realizar uma leitura de mundo construída colaborativamente.
Ou seja: não basta ser insubordinado, há que ser criativo. “É necessário haver a consciência de que se está gerando novas ações. Os princípios éticos são fundamentais para atos de insubordinação criativa”, defende Celi. Ela afirma que o movimento passa longe de ser um modismo na educação. “Pelo contrário: ele exige consciência sobre a seriedade que é a educação. E, acima de tudo, o professor precisa estar em um movimento constante de estudo e desenvolvimento profissional, ampliando o conhecimento, pois só com muita fundamentação teórica e metodológica ele se sente seguro para executar ações de insubordinação criativa.”
A defasagem sensível na aprendizagem dos estudantes, consequência direta do fechamento das escolas durante a pandemia de Covid-19, deve impulsionar a insubordinação criativa na educação brasileira. “Os relatos de professores são de que a dinâmica da sala de aula está muito difícil”, afirma Celi. “As atividades pautadas no livro didático não estão dando certo, e nesse cenário eles estão tendo que buscar atividades diferenciadas, que promovam a interação.”
Recursos Educacionais Abertos e a insubordinação criativa
No cenário pós-pandêmico, ela enxerga uma janela de oportunidade para ações de insubordinação criativa com “a criação de práticas docentes que façam a ruptura com as práticas mais tradicionais.” E isso abarca ações que são realizadas por educadores muitas vezes sem ter a clareza de que aquilo é ser insubordinado criativamente.
Uma delas, por exemplo, é o uso de Recursos Educacionais Abertos (REA), materiais didáticos licenciados de maneira pública e aberta para que professores possam adaptá-los às suas realidades diversas. O REA ajuda a pensar em insubordinação criativa de uma perspectiva mais ampla, possibilitando torná-la escalável e adentrá-la ao processo educacional. Essa é a opinião de Daniel Pinheiro, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, em Teixeira de Freitas.
“Os conceitos estão conectados pois marcam um mesmo movimento: contra a lógica que está instituída. É interessante compreender como os próprios REA podem colaborar para a insurgência de ações criativas e anti-sistema”, reflete Daniel, que complementa: “Mesmo que a escola tenha seus padrões e processos, que têm a sua importância, cotidianamente ela está lidando com o inesperado, o emergente. Temos que estar prontos para lidar com essas insurgências, para lidar com as demandas de conhecimento que vão aparecendo.”
“Mesmo que a escola tenha seus padrões e processos, que têm a sua importância, cotidianamente ela está lidando com o inesperado, o emergente”
Na perspectiva da formação docente, é preciso quebrar com o ciclo “natural” de instrumentalizar os educadores para usar determinados recursos. “Acreditamos que, para formar um professor de maneira insubordinada, é preciso entender onde ele está e as possibilidades que tem, para que tenha capacidade de buscar respostas às demandas colocadas ali.”
Daniel cita o projeto Conexão Escola Mundo, concluído em 2022, como um exemplo de fortalecimento do trabalho docente para que eles possam pensar elementos de transformação em seu cotidiano. “Muitas vezes os processos de insubordinação criativa resultam em elementos amplos, que significam muito para aquela comunidade. Devemos entender e fomentar essa lógica para que ela colabore com a emergência de novos processos.”
Dentro da escola, o protagonismo (insubordinado) dos alunos
Seguindo a mesma linha de raciocínio – de que a insubordinação criativa muitas vezes acontece sem ser nomeada dessa forma -, o projeto Trilha Tech na Escola é um bom exemplo para ilustrar como se dá esse processo na perspectiva dos estudantes.
A iniciativa, realizada pelo Instituto Catalisador (com apoio do Instituto MRV) na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Dilermando Dias dos Santos, em São Paulo (SP), tem o intuito de levar ferramentas digitais para as escolas públicas, estimulando que os alunos se apropriem delas para construírem um projeto coletivo de melhoria do espaço escolar.
“As coisas são como são, mas podem ser diferentes se a gente souber como fazer para transformá-las. A iniciativa ajuda os estudantes a pensarem em seu papel dentro da escola, as suas potencialidades e habilidades”, afirma Franciele Gomes, coordenadora de projetos do Instituto Catalisador.
“As coisas são como são, mas podem ser diferentes se a gente souber como fazer para transformá-las”
Nesta EMEF, o Trilha Tech na Escola é trabalhado de maneira interdisciplinar com todas as turmas do sexto e nono anos, estimulando nos estudantes o protagonismo para identificar problemas, criar propostas e planejar como aquela solução pode se tornar realidade. “Este processo deixa claro para os estudantes como eles mesmos fazem parte da solução, os colocando no centro de suas aprendizagens.”
Os projetos criados pelos estudantes envolvem competições esportivas, a reforma da mesa de pebolim e uma pesquisa sobre jogos que atendam a demanda das meninas, inserindo no debate uma questão de gênero. Também será realizada uma reconstrução da horta, que estava abandonada. “A princípio eles queriam mudar o cardápio da escola, mas com o processo foram entendendo que se plantassem temperos, legumes e frutas diferentes, eles poderiam influenciar no cardápio”, diz Franciele.
Iniciativas como essa ajudam os estudantes a estabelecer uma voz própria, que por sua vez será o ponto de partida para um maior engajamento estudantil no cotidiano escolar. “Com o tempo, essas transformações estarão escancaradas na escola, evidenciando que os alunos podem e devem ser os agentes de transformação e ter voz diante dos educadores e da gestão da escola”, reflete Rita Camargo, gestora de Desenvolvimento Institucional do Instituto Catalisador.
Insubordinação criativa como um ato político
Em suma, ao desafiar os mitos e conceitos preestabelecidos do que deve ser a experiência de crianças e jovens na escola, o educador estará realizando um ato de insubordinação criativa, conscientemente ou não. Eles são, acima de tudo, atos políticos, que criam novas possibilidades em suas aulas.
“O trabalho desenvolvido por aqueles que praticam a insubordinação criativa na educação busca, por fim, uma sociedade que se paute na justiça social, no direito humano, no respeito à diversidade, no direito de se expressar, em movimentar e compartilhar conhecimento, na responsabilidade que temos com o outro, em exercer a solidariedade e buscar relações mais éticas”, define Celi.
“A insubordinação criativa pode gerar frutos significativos na formação de nossos estudantes. Que eles possam ser ouvidos nas escolas, pois sempre temos muito a aprender com os alunos. Além de ouvir mais – ao contrário do que a formação tradicional impõe -, o professor deve colocar questões para que os alunos reflitam sobre o que querem. A escola deveria ser muito maior do que ela é hoje, e o conhecimento a gente só constrói coletiva e conjuntamente.”
Autor: Danilo Mekari
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.