Muitos objetos vistos como lixo pela sociedade podem ser usados nas escolas como ferramentas de aprendizagem. Em uma conjunção que traz benefícios educacionais e socioambientais, há experiências inspiradoras de aulas de robótica que aproveitam materiais descartados, fazendo com que o lixo se torne matéria-prima para as invenções dos estudantes.
Primeira sul-americana a ser finalista do Global Teacher Prize, considerado o Nobel da Educação, a professora Débora Garófalo começou seu projeto chamado Robótica com Sucata a partir de um problema que os próprios alunos apontaram em sala de aula: a quantidade de lixo que havia no bairro. “O trabalho nasce de uma problemática social de ressignificar o território educativo através do lixo que se tinha nas ruas”, conta ela, que trabalhava em uma escola estadual na cidade de São Paulo, em uma região vulnerável e constantemente afetada por enchentes.
Ao apresentar os primeiros conceitos de robótica com sucatas para as crianças, o desejo mais comum delas é o de construir brinquedos eletrônicos. A diversão, claro, foi permitida e estimulada, fazendo com que os estudantes se envolvessem com o aprendizado.
“Meus alunos começaram a criar coisas que eles tinham vontade de ter, mas não podiam pela situação social deles: criaram carrinhos, jogos, robôs. Depois, começaram a pensar em soluções para comunidade e olhar para a questão do rio”, lembra Débora. Logo, os estudantes estavam projetando temporizadores para reduzir uso de energia elétrica, semáforos inteligentes, sirenes e sensores que avisassem de alagamentos potenciais, para evitar tragédias.
Criatividade e pensamento crítico
Segundo a professora, realizar os projetos de robótica quase sempre estimula a criatividade. Mas usar a “sucata” no lugar de kits prontos traz vantagens extras do ponto de vista das habilidades socioemocionais. “O estudante tem que trabalhar a partir de materiais não estruturados, conhecer esses materiais para encontrar outras soluções, criar novas funcionalidades. Além de trabalhar a criatividade, ele desenvolve o pensamento crítico”, afirma.
O impacto vai ainda mais além quando leva-se em consideração as pessoas indiretamente atingidas pelos conhecimentos desenvolvidos em contexto escolar. O estudante se torna um protagonista social, capaz de levar novos saberes aos familiares e à comunidade ao redor da escola. “É o viés do estudante protagonista, autoral, no sentido de multiplicar os conhecimentos e atuar em uma causa”, explica Débora.
“Meus alunos começaram a criar coisas que eles tinham vontade de ter, mas não podiam pela situação social deles: criaram carrinhos, jogos, robôs. Depois, começaram a pensar em soluções para comunidade”
Em sua experiência, contudo, o envolvimento da comunidade é uma conquista que vem com o tempo. “O envolvimento da família é um processo cultural – e acontece principalmente porque ela viu o encantamento do estudante”, diz. Também foi relevante o fato de que todos sentiram o impacto ambiental positivo das propostas. “Eles conseguiram olhar os resultados, a comunidade sentiu a diminuição dos estragos das enchentes”, relata a professora.
Ressignificar o “lixo”
O trabalho de robótica com “lixo” é uma forma de enfrentar duas desigualdades comuns no Brasil: a tecnológica e a ambiental. “Em São Paulo, em locais de classe alta, você tem praças cuidadas, árvores, assim como acesso à tecnologia. Mas é na periferia que se descarta o lixo eletrônico”, afirma José Neto, idealizador da MetaRecicla, empresa de reaproveitamento de materiais eletrônicos, e da Escola da Criatividade, que ensina robótica para crianças durante o contraturno escolar.
Mais do que reciclar, sua proposta é ressignificar o lixo. Quando se fala em eletrônicos, cada botão, motor, fio ou bateria tem um valor muito maior do que se forem desfeitos e vendidos ao quilo, de acordo com o tipo de material que foram produzidos. “O valor tecnológico é maior do que os materiais isolados, como cobre, estanho e alumínio. Nos aparelhos do nosso dia a dia há tecnologias incríveis; o ímã do celular é o mesmo usado para levitar os trens de alta velocidade”, cita.
Para ele, aprender robótica a partir de eletrônicos descartados tem o potencial de mitigar dois dos maiores desafios atuais da humanidade: a quantidade crescente de lixo e o déficit educacional. “Tem muita gente com curso superior que não sabe para qual lado apertar um parafuso”, observa.
Educação 4.0: colaborativa e sustentável
O olhar criativo para o descarte torna as pessoas mais preparadas para a complexidade do mundo atual. “Esse material potencializa a educação 4.0. Não basta só fazer um robô para explorar Marte, temos que pensar se ele é sustentável, se ele vai trazer um impacto social relevante”, explica o educador.
Embora seja importante a escola oferecer esse tipo de abordagem, a educação 4.0 pode ocorrer colaborativamente, em diferentes espaços, para diferentes públicos. Isso porque ela tem que ser democratizada para ser plena, defende Neto. “É uma grande revolução ter gente desenvolvendo tecnologias nas garagens. Podem ser crianças, jovens, idosos, pessoas especiais, pessoas sem formação escolar, pessoas obesas, população LGBTQIA+. Essa diversidade nos traz novas ideias, para novas aplicações. Por que um pescador não pode ser um desenvolvedor de tecnologia?”, questiona.
E sim, todos são capazes de criar com peças eletrônicas, começando pelos conceitos mais simples. “Com a meta reciclagem, a pessoa quebra a caixa-preta dos eletrônicos. No fundo, essa caixa quer dizer: não abra, este equipamento foi feito por especialistas. Mas eu posso me apropriar dessa tecnologia e fazer do meu jeito”, finaliza Neto.
Autora: Luciana Alvarez
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.