A obra de Paulo Freire é criativa e impulsionadora de criatividade na educação. Porém, dentre tantos vieses que a palavra criatividade pode comportar, do ponto de vista freiriano, ela precisa ter um objetivo de libertação. Como uma capacidade intrínseca ao ser humano, ela deve ser uma ferramenta para pensar de maneira inovadora e transformar o mundo para melhor.
A criatividade é um elemento sempre presente nos escritos de Paulo Freire, explica Paulo Roberto Padilha, diretor pedagógico do Instituto Paulo Freire. “Ela está lá desde o primeiro livro dele, sempre pensando no concreto da vida e da educação a partir das experiências reais, da cultura. Ele parte dos saberes das famílias, de como é importante o respeito às experiências das pessoas, o que traz uma riqueza de criatividade”, afirma.
Além de construir ideias e práticas inovadoras, Freire também experimentou na linguagem, publicando obras para diversos públicos, em vários formatos. “Paulo Freire é um grande perguntador, um problematizador. Ele queria sempre fazer diferente. No final da vida, ele queria se dedicar aos jovens, então fez Pedagogia da Autonomia para ser um livrinho de bolso e muito barato, para que todo jovem pudesse lê-lo”, conta Padilha.
“Paulo Freire é um grande perguntador, um problematizador. Ele queria sempre fazer diferente”
Assim como Paulo Freire demonstra o quanto as pessoas sem instrução formal são detentoras de conhecimentos, é possível fazer um paralelo com a criatividade. Muitas pessoas, mesmo sem serem artistas ou inovadores reconhecidos formalmente, são absolutamente criativas no seu cotidiano. “O sofrimento do nosso povo não é pouco. Tem gente que lida na vida com tantas situações limites, que só mesmo com muita criatividade para enfrentar”, diz Padilha.
“Situação limite” e “inédito viável” são dois conceitos freirianos profundamente ligados à criatividade, mas ambos demandam uma consciência crítica. O primeiro diz respeito a circunstâncias que despertam nas pessoas a necessidade e a vontade de promover mudanças. A partir da tomada de consciência sobre o que é preciso ser transformado, passa-se à ação. Já o inédito viável é uma resposta à situação limite, uma nova ação política posta em prática.
“Nós, professores, fomos muito silenciados e vamos nos acostumando a não ser criativos”
Na rotina docente, promover a criatividade exige um esforço consciente. “Nós, professores, fomos muito silenciados e vamos nos acostumando a não ser criativos. É difícil ser criativo sem poder comprar um livro, ir ao teatro, ao cinema. Acabamos até nos tornando os silenciadores dos estudantes”, reconhece Padilha. Portanto, é preciso de uma dose de indignação para não se conformar com as coisas como ela são. “Exige muita disposição para sair do lugar-comum. A criatividade também vem da raiva, da justa ira, que nos faz superar nossos silenciamentos e as violências que vivemos”.
Segundo o diretor pedagógico, a criatividade é absolutamente indissociável das ideias e ações de Paulo Freire. “Ele dizia que somos seres incompletos, inacabados, inconclusos. A gente busca se completar no outro, na natureza, no mundo”. Por isso estamos sempre aprendendo, constantemente criando.
Universal, com limites
Se até a década de 1960 a criatividade era relacionada a um grande talento para as artes, um dom especial de algumas pessoas iluminadas, a partir das ideias do psicólogo americano John Paul Gilford, passou a prevalecer a concepção de que a criatividade é constituinte da própria natureza humana, segundo explica Agostinho da Silva Rosas, docente da Universidade de Pernambuco e conselheiro consultivo do Centro Paulo Freire-Estudos e Pesquisas.
Ainda assim, há uma grande responsabilidade dos educadores no desenvolvimento dessa capacidade. “A criatividade é inerente: todos somos sujeitos da ação criativa. Porém, nossa maneira de agir se aprende, conforme as condições favoráveis ou desfavoráveis. A ousadia é um carro-chefe para a ação criativa. Não ter medo de ser ousado é algo aprendido”, afirma Rosas.
Mesmo sendo desejável, a ousadia criativa não pode ser irrestrita. Respeitando a lógica de Paulo Freire, ela deveria ser limitada por valores como a dignidade humana. “Ninguém pode negar que a bomba atômica foi criada por meio de uma extraordinária capacidade de criatividade. Mas essa ação criativa não nos interessa, porque não diz nada para um processo de libertação; é sim uma manobra para matança, para desumanizar”, diz o professor.
“A ação criativa pressupõe um ato político”
E não faltam exemplos atuais: “Há uma ação criativa na produção de agrotóxicos que levam à morte e ao adoecimento. Mas essa não tem a ver com os valores de uma ação criativa emancipadora, democrática, solidária, a favor da dignidade humana”, cita Rosas. É preciso não ter medo de ser diferente e criar, contudo preservando valores éticos.
Criatividade não é sinônimo de improviso. Ao contrário, ela exige rigor e radicalidade, alerta o professor. “Radicalidade não é extremismo; é um exercício de ir com profundidade à raiz das coisas, à essência. Ser radical é uma exigência à emancipação. Rigor não é obediência; é o compromisso e a responsabilidade com o que faço, o rigor metódico. Não há possibilidade de pensarmos a ação criativa com o viés freiriano e todos os que pensam uma educação libertadora, desprovida de rigor e radicalidade, porque a ação criativa pressupõe um ato político”, afirma o docente.
Autora: Luciana Alvarez
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.