Pense nas últimas vezes que você pediu para a sua turma ler um livro, assistir a um filme, ouvir uma música ou analisar uma pintura. Quantas vezes foram selecionadas obras de autores negros e indígenas? Apesar de a representatividade na literatura e nas artes ser fundamental para a construção de uma aprendizagem mais criativa, nem sempre essa diversidade está contemplada nas práticas e no currículo das escolas brasileiras.
De acordo com a pesquisa Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, realizada pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana, 71% das redes municipais de ensino do país realizam pouca ou nenhuma ação para implementar a legislação que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas.
O levantamento, realizado com 1.187 Secretarias Municipais de Educação (21% das redes municipais do país), mostrou que apenas 29% delas realizam ações consistentes e perenes para garantir a implementação da lei.
Mas se as escolas e os gestores ainda não estão preparados para pôr em prática um ensino mais diversificado, quais ferramentas os professores têm em mãos para, de alguma forma, atender não apenas as expectativas da lei, como também a diversidade da própria sala de aula?
Em meio aos desafios, projetos e iniciativas que já chegaram aos estudantes propõem aulas mais criativas, sem deixar de lado a importância de criar laços com as histórias e as identidades dos próprios alunos.
Protagonismo dos estudantes e representatividade na literatura
Na Escola Estadual Vereador Antônio de Ré, na cidade de Guarulhos (SP), a professora de história Rosimeri Carvalho encontrou um caminho para incentivar que os estudantes pudessem ler mais autores e histórias protagonizadas por pessoas negras. Junto com a turma do ensino médio, ela construiu o Coletivo Resistência Negra, que promove rodas de conversa para trocar vivências e experiências de leituras.
“Eu tenho até uma professora que ajuda, mas o espaço é dos alunos. Eles que são os protagonistas e que decidem o que vai ser dito. Com esse momento, senti que há uma melhora no rendimento das aulas, principalmente por meio das leituras que trazemos”, conta.
“A literatura também nos ajuda a entender questões sobre nós mesmos e sobre nossa própria história”
As trocas, que geralmente acontecem no intervalo das aulas, também funcionam como uma espaço de construção política, sem deixar de lado o encanto pela leitura e o acolhimento. “O Coletivo é um lugar de afeto, onde os alunos que participam se sentem identificados uns com os outros, tanto em relação às questões raciais, como também na identificação de suas características com a de autores e de personagens das histórias. A literatura também nos ajuda a entender questões sobre nós mesmos e sobre nossa própria história”, reflete Lucas Damasceno, aluno do terceiro ano do ensino médio e integrante do Coletivo.
Novos olhares e narrativas
Para romper com estereótipos e propor novos olhares para a literatura, especialmente a de cordel, a escritora Jarid Arraes traz para os seus trabalhos relatos de luta política, questões raciais e histórias de mulheres.
“Penso que a minha abordagem se diferencia bastante da forma mais comum associada ao cordel, com histórias em que homens são heróis, enquanto as mulheres estão como plano de fundo ou como personagens que servem para o deboche e recebem julgamentos machistas. Ainda hoje, até mesmo mulheres cordelistas enfrentam muitos desafios no meio do cordel, por isso sempre fui tão enfática no meu trabalho”, explica a escritora, que vem de uma família de cordelistas.
Jarid é autora do livro ‘Heroínas Negras Brasileiras’, que celebra, por meio de cordéis, a memória de mulheres negras que trouxeram grandes contribuições para a história, mas são esquecidas pelos materiais didáticos. Hoje, ela conta que recebe diversos cordéis produzidos por estudantes que tiveram acesso à sua obra e que trabalharam o livro em sala de aula com os professores.
“Encoraje os estudantes a escreverem sobre aquilo que conhecem, sobre o que é familiar e que lhes desperta interesse”
“Acho maravilhoso receber cordéis escritos por estudantes e ver os trabalhos que eles apresentam, porque é evidente quanto afeto colocam nas histórias que escrevem. Percebo que também se apropriam dessa linguagem literária e se tornam cordelistas.” Como escritora, ela também afirma que é muito bonito ver que existe um caminho possível para que mais pessoas, especialmente crianças e adolescentes, se aproximem da literatura e também produzam literatura. “É muito bonito, porque a literatura de cordel é literatura brasileira, muito nossa, e assim ela se mantém viva”, conta.
Para além da representatividade na literatura, por meio das leituras e da escuta de histórias, Jarid também enxerga na produção textual um caminho para um ensino criativo e conectado com a trajetória dos jovens. “Encoraje os estudantes a escreverem sobre aquilo que conhecem, sobre o que é familiar e que lhes desperta interesse. O cordel cria espaços para a livre expressão e nos convida a contar histórias ou defender pontos de vista que significam algo na nossa realidade. É tornando a literatura algo próximo e íntimo que conseguimos estimular a leitura e a escrita. Vejo isso dar certo todos os dias”, sugere.
Representatividade nos materiais didáticos
No livro ‘Cientistas Brasileiros’, editado pela Sapoti Projetos Culturais, o físico Alan Alves Brito traz um olhar afrocentrado e indígena para a produção de conhecimento, fugindo do arquétipo masculino e branco de cientista, tão presente nos materiais didáticos de ciências.
Em seu trabalho, há a biografia de cientistas negros, de mulheres e de outros nomes que acabam contribuindo para um olhar mais diverso para o ensino. Tudo isso ao lado de outras perspectivas de cientistas brasileiros pioneiros e da nova geração, como Carlos Nobre, que reforça a importância do conhecimento sobre a Amazônia, e Ligia Pereira, que estuda a composição genética da população.
“Quando a gente leva um livro sobre cientistas para a sala de aula, contando as histórias dessas pessoas, isso também é criativo”, opina Daniela Chindler, diretora da Sapoti e coordenadora da publicação, que foi produzida via Lei Municipal de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro e, por esse motivo, teve 60% da sua tiragem de 2.000 exemplares doada para escolas públicas do município do Rio.
Daniela explica que o projeto pode ajudar a potencializar o lugar de criatividade que, ela reconhece, muitos professores já buscam levar para a sala de aula. Ao contar a biografia de personalidades que mais se aproximam aos alunos, é possível construir perspectivas de futuro para os estudantes. “Ao falar de forma criativa de uma grande mulher que contribuiu para a ciência, você apresenta como ela tinha uma vida que podia lembrar muito a das mulheres do nosso dia a dia. E aí você mostra, de um jeito leve e com a ajuda de uma linguagem criativa, que ser cientista, ou ir para a Nasa, não é algo inalcançável para aquela aluna”, explica.
Quer saber mais sobre o assunto? Confira outras sugestões:
Dicas de filmes
Nope (2022) – Filme de ficção científica, de Jordan Peele, que brinca com vários elementos clássicos de Hollywood para apresentar o apagamento da contribuição de pessoas negras no cinema.
Estrelas Além do Tempo (2016) – FIlme que conta a trajetória de cientistas negras dentro da Nasa, que usaram da inteligência e da criatividade para encontrar novos caminhos para a agência espacial.
Dicas de livros
Livro – Heroínas Negras Brasileiras, de Jarid Arraes. Companhia das Letras.
Audiolivro – Cientistas Brasileiros, de Alan Alves Brito. Sapoti Projetos.
Livro – Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes, de Elena Favilli e Francesca Cavallo. VR Editora.
Autora: Agnes Sofia Guimarães
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.