Foi em 2014, durante um torneio de poesia em Paris, que Emerson Alcalde conheceu os slams interescolares, competições protagonizadas por alunos de diversas escolas francesas. O slammer e arte-educador, também um dos criadores do Slam da Guilhermina, enxergou uma oportunidade para ampliar o trabalho já realizado pelo coletivo há anos, na zona leste de São Paulo.
Hoje, o Slam Interescolar da Guilhermina é um dos principais campeonatos de slam do país. Em poucos anos, a competição deixou de ser municipal para contar com a participação de escolas de diversas regiões do estado de São Paulo.
“Muitos professores relatam que o slam realiza ações fantásticas na sala de aula. Além de aumentar o gosto pela leitura e pela escrita, já recebi relatos de jovens de escola pública, de regiões periféricas, que antes eram arredios e indisciplinados, e encontraram na poesia uma forma de extravasar seus problemas e de compartilhar as violências que enfrentava em outros lugares e que eram a causa para terem um comportamento considerado ‘problemático’ até então”, conta Emerson.
Slams são espaços livres de batalhas de poesia, oriundas do movimento hip hop. Populares em diversos espaços urbanos do país, os slams passam a aparecer, inclusive, em currículos escolares. Na Base Nacional de Comum Curricular (BNCC), o slam é prescrito como slam-poesia, além de entrar em diálogo com várias habilidades previstas pelo documento.
Na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, também há a orientação para que um dos eixos a serem trabalhados, nas aulas de Língua Portuguesa, seja a exploração da poesia marginal – em categorias que incluem textos do rap e do slam.
Valorização de outros saberes
Emerson explica que o slam interescolar passa por diversas etapas até chegar ao momento da competição final. Além de inscrever os alunos para a competição, professores também realizam formações com slammers, para que consigam ajudar os alunos no desenvolvimento de suas criações poéticas.
“Foi a forma que encontramos para que professores também pudessem aprender como podem usar o slam em outros momentos além da nossa competição. É um momento de troca em que eles falam com muito entusiasmo sobre como os slams ajudam a atrair o interesse dos alunos para as ideias que eles já levam para a sala de aula.”
“As aulas de literatura se tornam um espaço em que os estudantes ganham uma liberdade maior para falar o que sentem e trazer o que já conhecem”
Bruna Vidal é professora de Língua Portuguesa da Escola Estadual Professor Astrogildo Arruda, de ensino médio de tempo integral, localizada em São Miguel Paulista, no extremo leste de São Paulo. Chamada carinhosamente de Bru Bru por colegas e alunos, a professora também é poetisa e, no decorrer dos seus dezesseis anos na sala de aula, sempre buscou trabalhar com aulas de escrita criativa, além de organizar saraus na escola.
Quando conheceu o Slam Interescolar, Bruna viu uma oportunidade de ampliar a vivência poética entre os alunos e, desde então, inscreve a escola todos os anos. Em 2021, uma aluna chegou à final da competição, terminando em quarto lugar.
Além da participação na competição do Slam da Guilhermina, a professora realiza slams internos na escola, em parceria com o grupo Slam Astro, que já está na sua quinta edição. A professora também criou uma página no instagram para divulgar os trabalhos dos alunos, que pode ser conhecida aqui.
Bru Bru destaca que, na escola, a prática do slam ajuda a ampliar a identificação dos alunos com a poesia, a partir do momento em que reconhecem narrativas que dialogam com o seu cotidiano, e mostrem que é possível valorizar as próprias vivências para a criação de poéticas potentes.
“As aulas de literatura se tornam um espaço em que os estudantes ganham uma liberdade maior para falar o que sentem e trazer o que já conhecem. Hoje trocamos vídeos de slammers durante as aulas, realizamos oficinas com a escola inteira”, comenta a professora. “É algo que potencializa o que eu sempre falo para eles: a gente tem que valorizar os nossos artistas, que estão na nossa quebrada e merecem nosso máximo respeito.”
Poesia que aproxima, e revoluciona, o prazer pela escrita
Professora da Universidade Estadual de Campinas e especialista em criações poéticas a partir do slam, Cynthia Neves também reforça que o tom coloquial das produções deve encontrar espaço nas salas de aula.
“A linguagem da poesia-slam escapa da norma culta padrão porque se trata de uma poesia oral por excelência. Trata-se de uma poesia escrita para ser oralizada e performada em voz alta. Os poetas-slammers se utilizam da linguagem poética como arma política: é por meio de seus versos que denunciam a violência que atinge a população preta, pobre e periférica do Brasil”, explica.
Em sua visão, para que a escola acolha os eventos de slams em seus espaços e em seus currículos é preciso que haja acordos entre professores e estudantes-poetas. “Com convenções previamente acordadas entre educadores e educandos, creio que não há motivo para proibições e/ou restrições que desrespeitem o que é característico do evento e do gênero slam”, opina.
“O rap deve adentrar os muros escolares e disparar uma tensa e necessária discussão sobre o currículo e as práticas pedagógicas. Precisamos construir pontes e estabelecer conexões profundas com todos os alunos na busca por um processo educativo qualificado”
Insurgência da linguagem
Professora do Ensino Fundamental e pesquisadora, Ana Claudia Fernandes também acredita que educadores devem ser mais abertos às formas de contar dos raps.
“O contexto de produção do rap exige a insurgência da linguagem. Não podemos didatizar o canto falado; as palavras tidas como ‘chulas’ pela elite brasileira, que costuma usar tal formulação como argumento para desqualificar o gênero, são intencionalmente usadas nos versos para dar sentido à construção de uma palavra viva e concreta, fortalecendo um discurso que clama pela visibilidade de um povo e que revela a força da luta da periferia por outras condições de vida”, observa.
Ela defende que o rap não fique de fora da escola. “O gênero deve adentrar os muros escolares e disparar uma tensa e necessária discussão sobre o currículo e as práticas pedagógicas. Precisamos construir pontes e estabelecer conexões profundas com todos os alunos – e com cada um deles – na busca por um processo educativo qualificado, que efetive a implantação de uma educação antirracista e democrática nas instituições escolares brasileiras”, reflete.
Premiação ao slam
Em 2021, o slam interescolar ganhou o Prêmio Jabuti de Fomento à Leitura. Como a premiação aconteceu ainda no período do isolamento social da pandemia, Emerson recebeu o troféu em casa. Para ele, o momento foi um acontecimento material de como o projeto consegue desafiar olhares ainda normativos sobre a literatura.
“Recebi o premiação de um funcionário que me contou que estava emocionado em levar o prêmio para algum lugar que não fosse nas regiões elitistas da cidade, em que há a concentração dos autores que geralmente são reconhecidos como grandes nomes da literatura. É um momento em que percebemos a força do slam e de um peso de uma vitória como essa”, recorda.
Uma estratégia antirracista
Cynthia também destaca que, na sala de aula, o rap e o slam são eficientes para uma educação antirracista graças a uma autoria que de fato vivencia as principais violências do racismo. Ao mesmo tempo, a prática antirracista também se estende pelo fato da criação poética trabalhar uma literatura que foge do cânone.
“O rap, assim como os slams, abordam temas antirracistas porque são produções situadas no tempo e espaço e cujos poetas-rappers-slammers são, em sua maioria, pessoas pretas e periféricas. A ideia de levar a poesia do rap e a poesia-slam para a sala de aula pode envolver estudantes que se identificam com as letras dos versos cantados e declamados em voz alta. É uma estratégia pedagógica interessante porque dessacraliza a literatura e a traz para a realidade dos jovens da educação básica”, reflete.
“O slam é mais uma arma para uma educação antirracista, pois mostra o quanto esses jovens sofrem, mas como eles também fazem parte de uma juventude que pode voar muito alto”
Bruna Vidal também reconhece efeitos, entre os alunos, que encaminham para um combate ao racismo que extrapola os muros da escola.
“A maioria dos nossos estudantes são jovens negros e periféricos. Eles sabem muito bem o que é sofrer com a dor do racismo no dia a dia, com as violências do Estado e da própria sociedade. Eles sabem o que é serem julgados na entrevista de emprego por causa do black, por causa do cabelo trançado. Quando colocam no papel o que carregam, as angústias, as tristezas, as revoluções que querem fazer, a gente vê como o slam é mais uma arma para uma educação antirracista, pois mostra o quanto esses jovens sofrem, mas como eles também fazem parte de uma juventude que pode voar muito alto, e que vai voar muito alto”, conclui.
Aumento de visibilidade
A professora também comemora o aumento da visibilidade do slam para discutir práticas de educação antirracista nas escolas. Um exemplo foi o convite feito por uma escola municipal ao Slam Astrogil para abrir uma aula de coordenação pedagógica que discutiria possibilidades de práticas de educação antirracista para o ano escolar.
“Levamos poetas que mostraram em versos o que enfrentam na sala de aula, as situações constrangedoras que sofrem e que devemos falar quando estamos pensando em uma verdadeira educação antirracista. Ali, a arte mostrou seu poder para também educar”, finaliza.
Para saber mais:
Livro Slam Interescolar–SP: Das Ruas Para As Escolas, Das Escolas Para As Ruas. Editora LiteraRUA, 2021.
Canal no YouTube do “Slam da Guilhermina”.
Autora: Agnes Sofia Guimarães
* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.